A Anistia de 8 de Janeiro: O Avanço Irrefreável de uma Proposta e a Crise de Autoridade do Governo

A proposta de anistia aos envolvidos nos eventos de 8 de janeiro, em Brasília, avança rapidamente no Congresso Nacional, e tudo indica que sua aprovação está prestes a acontecer. Esse cenário escancara não apenas o enfraquecimento do atual governo na articulação política, mas também a força que ainda emana de uma liderança conservadora fora do poder formal.

Liderada por nomes da oposição, especialmente do chamado “centrão”, a proposta já conseguiu as assinaturas necessárias para ser pautada com urgência na Câmara dos Deputados. Na semana anterior, a oposição já havia reunido as 257 assinaturas para protocolar a urgência da proposta, e essa quantidade vem aumentando. O número mais recente aponta para pelo menos 262 assinaturas, demonstrando um movimento coeso que contrasta com a fragmentação do governo.

A tentativa do governo de frear esse avanço foi tímida e, até o momento, ineficaz. O adiamento da reunião de líderes por parte de Hugo Motta, presidente da Câmara, viajou ao exterior na semana em que a votação seria discutida, foi uma das poucas jogadas do governo para tentar ganhar tempo. Mas o adiamento pouco surtiu efeito diante da pressão crescente e da mobilização parlamentar.

Uma das características mais marcantes desse processo foi o apoio que veio do “varejo”, ou seja, da base de deputados individuais, em contraste com as lideranças partidárias, que ainda tentavam resistir à medida. Isso cria uma situação delicada para os líderes partidários: ao se oporem à urgência, correm o risco de se indispor com suas próprias bancadas, que em grande parte já sinalizaram apoio à anistia.

A lógica política é simples — quando a base parlamentar se mobiliza dessa forma, não há muito que as lideranças possam fazer sem arriscar rachas internos. O apoio da base torna a aprovação da urgência quase inevitável. Não por acaso, estimativas apontam que mais de 300 deputados devem votar a favor da anistia, número que ultrapassa com folga o mínimo necessário e se aproxima do quórum de emenda constitucional.

Isso indica algo ainda mais profundo: um isolamento crescente do governo federal em relação à base parlamentar, mesmo entre partidos que teoricamente o apoiam. Essa fragilidade de articulação revela-se especialmente crítica quando se percebe que o Executivo pouco pode oferecer em troca para reverter o jogo.

Historicamente, a articulação política no Congresso depende de um tripé: cargos, emendas parlamentares e capacidade de convencimento. No entanto, o atual governo tem enfrentado dificuldades notáveis em usar essas ferramentas. A liberação de emendas parlamentares, por exemplo, está emperrada por conta de entraves internos e da atuação do ministro da Justiça. Já os cargos nos ministérios estão saturados ou comprometidos com negociações passadas. Sobrou pouco a oferecer.

Além disso, a tentativa de conter o avanço da anistia por meio de negociação com a base mostra-se limitada. Para reverter a aprovação da urgência, o governo precisaria convencer pelo menos 10 deputados que já assinaram o pedido a mudarem de lado na hora da votação. E mesmo isso pode ser insuficiente, pois a adesão crescente à proposta cria um efeito dominó: quanto mais apoio ela recebe, mais confortável fica para outros parlamentares também se posicionarem a favor.

Existe, claro, o temor de retaliação por parte do Executivo. Contudo, esse medo perdeu força com o passar das semanas. A leitura predominante entre os deputados é de que o governo não tem força para punir os dissidentes. E mais: se tentar fazer isso, poderá perder o pouco apoio que ainda mantém dentro de partidos como União Brasil, Republicanos e PP, que já são voláteis por natureza.

A narrativa oficial do governo, de que o projeto representa uma “anistia à impunidade”, não tem surtido efeito prático. A oposição tem sustentado que não houve tentativa de golpe, e que os envolvidos foram cidadãos que expressaram indignação — ainda que de forma equivocada — e merecem uma revisão justa das punições. Além disso, a Constituição não proíbe explicitamente anistias em casos desse tipo, tornando esse argumento jurídico do governo frágil e questionável.

O ponto mais emblemático de toda essa movimentação é a figura de Jair Bolsonaro. Mesmo inelegível, fora do cargo e recentemente internado para uma cirurgia, ele foi peça-chave nos bastidores para articular esse movimento. Seus aliados costuraram acordos, pressionaram parlamentares e conseguiram mobilizar a base do Congresso em torno da pauta. Essa articulação mostra que Bolsonaro continua sendo uma força política viva e atuante — talvez até mais influente do que o próprio presidente da República.

Em termos simbólicos, o avanço da anistia representa uma vitória moral e política para Bolsonaro. Demonstra sua capacidade de movimentar o tabuleiro político mesmo sem poder institucional. Isso explica, em parte, a reação aflita de seus adversários, que já reconhecem nos bastidores que perderam a batalha da narrativa e da mobilização em torno da anistia.

Setores da esquerda, inclusive dentro do governo, já começaram a dar sinais de que estão na fase da aceitação. Propostas conciliatórias, como uma anistia parcial ou condicionada, foram ventiladas nos bastidores e até mencionadas por figuras do PT. Mas essas tentativas de suavizar a derrota foram rapidamente descartadas pelos próprios aliados da oposição, que agora controlam o ritmo da discussão.

Com a proposta avançando, resta à oposição manter a unidade até a votação em plenário. A expectativa é que a aprovação aconteça com ampla margem. Após isso, o texto segue para o Senado, onde o cenário pode ser um pouco mais difícil, mas ainda assim viável, dada a atual correlação de forças e o clima político.

Como último recurso, o governo pode tentar acionar o Supremo Tribunal Federal para barrar a proposta sob alegações de inconstitucionalidade. No entanto, esse caminho é arriscado. O STF já enfrenta forte desgaste com a opinião pública e acumula críticas por interferências consideradas excessivas no Legislativo.

Caso tente derrubar a anistia por meio judicial, a Corte pode acabar se expondo ainda mais. Seria mais um episódio de conflito aberto entre os Poderes, com alto custo institucional. Além disso, a judicialização da anistia seria vista por muitos como uma tentativa de contrariar a vontade popular expressa pelos representantes eleitos no Congresso.

A possível aprovação da anistia não é apenas uma derrota pontual. Ela representa um marco na atual legislatura: um indicativo claro de que o governo perdeu o controle da pauta e da base. Mostra que as promessas de estabilidade política e diálogo não estão se concretizando. E evidencia que o discurso de que a oposição estava isolada e fragilizada não corresponde à realidade.

É uma derrota estratégica porque compromete a autoridade do Executivo e fortalece uma oposição que, até então, era retratada como desorganizada. Com essa vitória em mãos, a oposição pode se sentir legitimada a avançar em outras frentes, inclusive com pautas mais ambiciosas.

Ainda que inelegível, Bolsonaro continua sendo o principal nome da direita no Brasil. Seu protagonismo na articulação da anistia reforça essa posição. Mais do que isso, mostra que sua influência não depende de cargo ou mandato. Ele é, de fato, o líder informal da oposição e a figura que, direta ou indiretamente, definirá o cenário eleitoral de 2026.

Mesmo que não dispute a eleição, Bolsonaro terá o poder de transferir votos, mobilizar bases e influenciar alianças. O sucesso da proposta de anistia é um lembrete eloquente de sua força política. Enquanto o governo hesita, recua e se mostra ineficaz, Bolsonaro, mesmo internado, articula, mobiliza e conquista vitórias no campo político.

A anistia de 8 de janeiro está prestes a ser aprovada. Esse fato, por si só, já altera o equilíbrio político em Brasília. Mas seu impacto vai além: mostra que o atual governo está politicamente fragilizado, que o Congresso tem vida própria e que a oposição — liderada simbolicamente por Bolsonaro — está mais viva do que nunca.

Não se trata apenas de uma anistia. Trata-se de um momento simbólico e decisivo na política brasileira. Um divisor de águas que coloca em xeque a narrativa dominante e reacende a disputa pelo controle dos rumos do país. O que está em jogo agora é a legitimidade do poder e a força de quem realmente influencia as decisões em Brasília.

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