Um pedaço do século XIX em pleno 2025
Enquanto o mundo se prepara para a era da inteligência artificial e da colonização de Marte, há um lugar onde o tempo parou. Ruas de terra, carroças puxadas por cavalos, lamparinas a óleo e casas sem qualquer fio elétrico. Nessa vila, não há celulares, nem redes sociais — e o conceito de “Wi-Fi” soa tão distante quanto a própria ficção científica. Trata-se da realidade dos Stauffer Mennonites, um grupo religioso que decidiu viver como no século XIX, resistindo a tudo o que representa o avanço tecnológico do mundo moderno.
Essas comunidades existem, de fato, em regiões do Canadá e dos Estados Unidos, e se expandiram para países como Bolívia, Paraguai e México, mantendo-se isoladas e autossuficientes. Não se trata de um experimento social, mas de uma convicção profunda: a tecnologia corrompe, e a simplicidade aproxima o homem de Deus.
Os Mennonites surgiram no século XVI, na Europa, durante a Reforma Protestante. O movimento foi liderado por Menno Simons, um ex-padre holandês que pregava a vida comunitária, o pacifismo e a separação entre Igreja e Estado. Ao longo dos séculos, parte desse grupo se dividiu em linhas mais conservadoras, que rejeitaram as modernizações e formaram os chamados “Old Order Mennonites” — e entre eles, o grupo mais rígido: os Stauffer Mennonites, também conhecidos como “Pike Mennonites”.
Sua filosofia é simples, mas radical: viver separados do “mundo”, preservando uma fé pura e um estilo de vida modesto. Essa separação inclui não apenas costumes, mas também a recusa deliberada de tecnologias que conectam a comunidade ao mundo exterior — da eletricidade ao automóvel, da internet à televisão.
Na vila dos Stauffer Mennonites, a vida começa com o nascer do sol e termina com o pôr. As casas são construídas manualmente, em madeira, e iluminadas por lamparinas a gás. As famílias acordam cedo para trabalhar na agricultura — milho, trigo, hortas e criações de gado e aves. Tudo é feito à mão ou com auxílio de ferramentas não elétricas.
Não há geladeiras, mas há câmaras subterrâneas onde se armazenam alimentos; não há máquinas de lavar, mas sim tanques e escovas. As roupas, simples e modestas, são costuradas à mão, com tecidos neutros e sem adornos. O uso de botões, por exemplo, é visto como vaidade, sendo substituído por ganchos de metal.
As ruas da comunidade são silenciosas, exceto pelo som das ferraduras. As carroças substituem carros, e o transporte é limitado ao que os cavalos podem percorrer. Nenhum morador possui automóvel, e a entrada de veículos modernos nas vilas é raramente permitida.
As escolas dessas comunidades funcionam de forma independente. As crianças estudam até por volta dos 13 ou 14 anos, com foco em leitura, escrita, matemática e doutrina religiosa. Não há computadores, nem livros de ciências modernas. A prioridade é preparar os jovens para a vida prática e para a fé.
Após essa fase, meninos e meninas passam a ajudar nas tarefas da casa e nas plantações. O casamento ocorre cedo, e as famílias são numerosas. A taxa de natalidade é alta, e o trabalho é a principal forma de aprendizado.
O conceito de “carreira” não existe — o que há é vocação comunitária: cada um contribui com o que sabe fazer. Uns fabricam móveis, outros cuidam da terra, outros produzem roupas. O dinheiro circula pouco, e a troca direta de bens é comum.
Para os Stauffer Mennonites, a fé não é apenas uma crença, mas a base de toda a organização comunitária. A autoridade espiritual é exercida pelos anciãos e ministros, eleitos entre os próprios membros. As decisões são tomadas coletivamente, e a desobediência às regras — o “Ordnung”, um código de conduta que regula tudo, desde o corte de cabelo até o uso de ferramentas — pode resultar em exclusão social.
Essa exclusão é severa. Quem desafia o Ordnung pode ser literalmente ignorado pela comunidade. Não é uma punição física, mas psicológica e espiritual. O castigo máximo é a “shunning” — a separação completa do grupo, o que equivale, para muitos, a perder a própria identidade.
De tempos em tempos, as câmeras do mundo moderno conseguem registrar fragmentos desse universo esquecido. Jornalistas e documentaristas que visitaram comunidades Amish e Mennonitas relatam o mesmo sentimento: entrar nelas é como atravessar um portal para o passado.
Os Stauffer e outros grupos semelhantes são cordiais, mas cautelosos. Visitantes não são rejeitados, mas não são convidados a permanecer. A fotografia, por exemplo, é vista com desconfiança. Muitos acreditam que capturar imagens é um ato de vaidade — algo que fere a humildade e o anonimato, virtudes centrais da fé.
Apesar do isolamento, há contato eventual com o “mundo inglês” — como chamam o restante da sociedade. Vendem produtos agrícolas, móveis e artigos artesanais em feiras próximas, mas sempre sob a condição de manter distância moral e tecnológica. Os acordos comerciais são feitos em dinheiro vivo; nada de cartões ou contas bancárias eletrônicas.
A recusa à eletricidade é o símbolo maior da resistência desses grupos. Não é apenas uma questão técnica, mas teológica. Conectar-se à rede elétrica pública seria, para eles, aceitar uma forma de dependência e exposição ao mundo exterior.
Os anciãos acreditam que a energia moderna abre caminho para outros vícios — rádio, televisão, internet — que trariam a tentação do orgulho, da cobiça e da vaidade. A luz artificial, dizem, rouba o ritmo natural da vida: “Deus fez o sol para iluminar o dia e a lua para marcar a noite. Quando o homem tenta mudar isso, desrespeita a ordem divina”, já afirmou um líder menonita em entrevista ao Wired.
Apesar da rigidez, essas comunidades não são ingênuas. Algumas aceitam tecnologias mínimas quando há justificativa moral. Um gerador a gás pode ser usado para ordenhar vacas ou refrigerar medicamentos em situações de emergência. Mas qualquer inovação é submetida ao crivo do Ordnung.
Curiosamente, algumas comunidades Amish e Mennonitas cresceram em número e prosperidade exatamente por causa dessa disciplina. Sua autossuficiência os protegeu de crises econômicas e dependências externas. Enquanto o mundo enfrenta recessões e hiperconectividade, eles continuam produzindo e sustentando famílias grandes com estabilidade.
Em toda comunidade isolada, há jovens curiosos. Muitos deles, ao atingir a adolescência, experimentam um período chamado Rumspringa — uma fase de liberdade em que podem sair e conhecer o mundo exterior antes de decidir se querem permanecer na comunidade.
Alguns não voltam. Outros retornam mais convictos. Esse processo funciona como uma catarse social e espiritual. A maioria escolhe ficar, mesmo sabendo que viverá sem as facilidades do século XXI. “A liberdade que o mundo oferece é frágil. A nossa é verdadeira”, disse um jovem menonita ao jornal The Guardian em 2023.
Ao observar a vida nessas vilas, é impossível não refletir sobre a ironia da modernidade. Enquanto o mundo luta contra a ansiedade digital, a dependência de telas e a desconexão humana, esses povos encontraram paz justamente ao se desconectarem — literalmente.
Eles não são prisioneiros de sua fé, mas guardiões de uma escolha. A vida sem eletricidade é dura, mas coerente com sua visão de mundo. E, de certo modo, é essa coerência que fascina o olhar externo: há beleza em dizer “não” quando o resto do mundo não sabe mais como parar.
Em 2025, quando se fala em transhumanismo e chips cerebrais, os Stauffer Mennonites vivem ainda como seus bisavós — sem energia elétrica, sem automóveis, sem redes sociais. As crianças brincam ao ar livre, as famílias jantam à luz de velas e os dias são regidos pelas estações do ano.
Eles não buscam o progresso, buscam permanência. Em um mundo que valoriza o novo, eles escolheram conservar o velho — e, paradoxalmente, é isso que os torna únicos. Sua resistência é uma espécie de manifesto silencioso: nem toda evolução é avanço.
A vila que vive no século XIX é real, e sua existência é uma provocação à sociedade moderna. Enquanto o mundo corre em busca de mais velocidade e eficiência, esses homens e mulheres escolheram o oposto: lentidão, simplicidade e fé.
Os Stauffer Mennonites — e seus parentes espirituais, os Amish — mostram que viver sem tecnologia não é retrocesso, mas opção consciente. E talvez, no fundo, essa seja a mensagem mais moderna que eles poderiam nos dar.
Fontes consultadas
- Wikipedia: Stauffer Mennonites, Old Order Mennonites, Amish way of life
- Wired: “Technology-Free Mennonite Community Purposely Lives Off the Grid”
- The Guardian: “Inside the world of the Amish youth who leave and return”
- Ohio Amish Country: “Amish FAQs and Ordnung Explained”
- National Geographic: “The Amish: A People Apart”
