A recente morte da menina Sara Raíça, de apenas 8 anos, no Distrito Federal, comoveu o país. Uma tragédia que, por si só, exige respeito, compaixão e, acima de tudo, investigação cuidadosa. No entanto, o caso tem sido rapidamente instrumentalizado por setores políticos e da imprensa tradicional como justificativa para avançar projetos de censura e controle das redes sociais no Brasil.
Por trás do discurso de proteção às crianças, esconde-se uma tentativa escancarada de retomar o projeto de regulamentação da internet — anteriormente rejeitado sob a alcunha de “PL das fake news”. A narrativa agora muda de foco: se antes o pretexto era o combate à desinformação, agora o argumento central é a suposta necessidade de proteger os jovens de “desafios perigosos” que circulam nas plataformas digitais.
Mas será que o caminho para proteger crianças é abrir as portas para a censura generalizada? Será que casos raríssimos e pontuais devem servir de base para leis que afetam milhões de usuários e cerceiam a liberdade de expressão?
Segundo relatos, a menina foi encontrada sem vida em seu quarto, com um tubo de desodorante e um celular próximos ao corpo. Especula-se que a causa da morte tenha sido uma parada cardiorrespiratória provocada por um suposto “desafio do desodorante” — prática viral que consiste em inalar o produto por tempo prolongado.
É evidente que qualquer morte infantil choca, principalmente quando relacionada a práticas irresponsáveis ou perigosas. No entanto, até o momento, não há confirmação definitiva de que Sara tenha, de fato, participado de tal desafio. Ainda que essa hipótese se confirme após a devida perícia nos dispositivos eletrônicos e redes sociais da criança, trata-se de um caso extremamente isolado.
Esse tipo de tragédia, infelizmente, não é novo e tampouco exclusivo da era digital. Brincadeiras de risco, desafios mortais e acidentes infelizes sempre ocorreram — mesmo muito antes do surgimento das redes sociais. As crianças, por não terem um senso crítico plenamente desenvolvido, acabam por se expor a perigos reais, independentemente do meio.
O que se ignora — propositalmente — no debate atual é que as leis brasileiras já contemplam punições para crimes digitais, induzimento ao suicídio, apologia ao crime e exposição de menores a conteúdos nocivos. A legislação vigente permite identificar, investigar e punir responsáveis por esse tipo de ação, sem que seja necessário alterar toda a estrutura de funcionamento da internet ou aplicar censura prévia às plataformas.
A tentativa de vincular esse caso a uma suposta omissão legal é desonesta. Trata-se de mais um exemplo de como tragédias individuais são exploradas para justificar projetos de poder. O que falta, neste cenário, não é legislação — é responsabilidade.
Rapidamente após a divulgação do caso, figuras como a deputada federal Maria do Rosário iniciaram movimentações para criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o objetivo de investigar crimes digitais contra crianças e adolescentes.
A pressa com que isso foi feito levanta sérias suspeitas. A investigação policial ainda nem havia sido concluída, e já se falava em legislar com base em um caso cujos contornos reais são, até hoje, nebulosos. Há, aqui, um claro interesse em utilizar o sofrimento alheio como ferramenta política. Subir em cima do caixão de uma criança para ganhar espaço midiático ou justificar controle institucional não é apenas desumano — é criminosamente imoral.
Esse tipo de conduta revela muito sobre a verdadeira motivação desses agentes: não se trata de proteger a infância, mas sim de avançar uma agenda que já vinha sendo rejeitada por ampla parcela da sociedade brasileira.
A tentativa de ressuscitar o projeto de regulamentação das redes sociais não é nova. Em 2023, o governo Lula tentou aprovar o chamado PL das fake news, mas fracassou mesmo estando no auge do seu poder político. Com apoio popular ainda recente, força legislativa razoável e grande influência sobre a mídia, o governo não conseguiu fazer o projeto avançar.
Agora, o cenário é diferente. Após derrotas políticas importantes e crescentes sinais de perda de apoio, o governo e seus aliados no Supremo Tribunal Federal tentam encontrar novos caminhos para avançar com o mesmo projeto, mas com outro verniz.
A pauta atual, centrada na “proteção às crianças”, é apenas mais uma tentativa de contornar a resistência popular e retomar o controle sobre o que circula nas redes. A lógica é sempre a mesma: usar casos extremos e raríssimos para justificar medidas que atingem toda a população.
Não é coincidência que a imprensa tradicional esteja na linha de frente dessa campanha. Grandes veículos, como Correio Braziliense e outras mídias alinhadas com o governo, têm pressionado abertamente por uma regulamentação da internet. Por quê? Porque estão perdendo relevância e audiência para as novas mídias digitais.
A ascensão de canais independentes, influenciadores e criadores de conteúdo que não dependem dos velhos esquemas de comunicação tem gerado desconforto entre os grupos tradicionais de mídia. Eles querem restaurar o monopólio da informação — e sabem que isso só será possível com forte intervenção estatal nas plataformas digitais.
Trata-se, portanto, de uma batalha geracional. De um lado, a nova mídia, descentralizada, dinâmica, plural e espontânea. Do outro, a velha imprensa, engessada, burocrática e dependente de verbas públicas.
Os que defendem o controle das redes sociais enfrentam um inimigo imbatível: o tempo. A nova geração, nativa digital, não aceita mais ser tutelada por instituições ultrapassadas. A liberdade de expressão, o direito de acessar diferentes fontes de informação e a pluralidade de vozes são características centrais do mundo moderno. E nenhuma lei, por mais autoritária que seja, conseguirá reverter essa maré.
É possível, sim, que haja retrocessos pontuais, que determinadas medidas passem, que redes sejam pressionadas judicialmente. Mas, a longo prazo, o autoritarismo sempre perde. A história mostra isso. O velho sempre perde para o novo. É uma questão de tempo, paciência e resistência.
A liberdade de expressão é um dos pilares fundamentais de qualquer sociedade democrática. Tentativas de regulá-la sob o pretexto de “proteger” a população — seja contra desinformação, seja contra desafios virais — são, na verdade, esforços para silenciar opiniões divergentes e consolidar o poder nas mãos de poucos.
É preciso compreender que a liberdade não se defende apenas quando nos convém. Defender a liberdade de expressão implica proteger o direito do outro de dizer aquilo com que você discorda. Implica aceitar que em um ambiente livre haverá sempre riscos, mas também haverá verdade, debate e aprendizado.
A morte de Sara Raíça é uma tragédia inominável. Toda solidariedade deve ser prestada à sua família e amigos. Mas uma tragédia não deve ser utilizada como palanque político. Usar o sofrimento alheio como justificativa para restringir a liberdade de milhões de brasileiros é um erro grave, que não deve ser tolerado.
A liberdade na internet precisa ser defendida com firmeza. Não se pode aceitar que casos pontuais, por mais tristes que sejam, sirvam de base para legislações que atentam contra os direitos fundamentais de expressão, informação e livre associação.
O Brasil já possui instrumentos legais suficientes para combater crimes digitais. O que falta é responsabilidade, ética e respeito ao devido processo legal — não censura.