No que deveria ser apenas mais um dia comum nas estradas brasileiras, um cidadão foi detido por gritar palavras ofensivas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a passagem de sua comitiva oficial. A cena inusitada e preocupante ocorreu na BR-101, no estado do Rio de Janeiro, e vem gerando indignação por todo o país.
A questão não é apenas jurídica ou protocolar. Trata-se, acima de tudo, de um sintoma claro da crescente perseguição à liberdade de expressão no Brasil. O episódio reforça a ideia de que o Estado tem se tornado cada vez mais sensível a críticas, especialmente quando estas são direcionadas às figuras mais poderosas da política nacional.
O cidadão, indignado com a presença da comitiva presidencial, gritou palavras como “ladrão” e “vagabundo” ao presidente. Relatos indicam que ele estava no acostamento, em um trecho congestionado da rodovia, e que apenas manifestou sua opinião de forma verbal. Em nenhum momento, segundo vídeos e testemunhos, ele teria “emparelhado” com a comitiva ou obstruído seu caminho — ao contrário do que alguns meios de comunicação noticiaram.
No entanto, o que seguiu foi digno de regimes autoritários: policiais rapidamente cercaram o cidadão, o abordaram de maneira agressiva e o conduziram à delegacia da Polícia Federal. O crime? Suposta “injúria” contra o presidente.
Tecnicamente, a injúria é um crime previsto no Código Penal Brasileiro, com penas leves e que, na prática, raramente resultam em prisão. É um crime de menor potencial ofensivo e que depende, em muitos casos, de representação da parte ofendida para ter seguimento jurídico. A dúvida que paira é: houve de fato essa representação por parte do presidente? Ou foi uma ação arbitrária de autoridades subservientes ao poder?
Seja qual for a resposta, o episódio demonstra o uso indevido da força pública para intimidar e calar uma crítica — ainda que rude — vinda de um cidadão comum. E isso, em qualquer democracia séria, é motivo de alerta.
A situação seria absurda o suficiente por si só, mas ganha contornos ainda mais preocupantes quando se observa que não é um caso isolado. Em setembro de 2022, outro cidadão foi preso em Montes Claros, Minas Gerais, também por ter chamado o então candidato Lula de “ladrão”. Casos como esses mostram uma tendência que vai além da mera aplicação da lei: trata-se de censura disfarçada, seletiva e dirigida.
Sob a justificativa de manter a “ordem” ou proteger a “honra” de autoridades, o Estado tem agido com mão pesada contra vozes críticas. A incoerência é gritante: enquanto protestos contra adversários políticos são tolerados ou até incentivados, qualquer manifestação contra figuras ligadas ao atual poder é tratada com repressão, constrangimento e prisão.
Apesar do aparato de repressão, o cidadão abordado na BR-101 manteve-se calmo durante toda a abordagem. Questionado pelos policiais, ele reafirmou que não obstruiu o comboio presidencial e que apenas manifestou sua insatisfação. Com firmeza e tranquilidade, deixou claro que é contribuinte, trabalha, paga seus impostos e tem o direito de expressar sua opinião — por mais dura que ela seja.
Esse comportamento evidencia um ponto essencial: a indignação legítima não precisa vir acompanhada de violência ou ameaça. O cidadão expressou sua revolta com palavras e foi tratado como criminoso por isso.
A reação desproporcional da comitiva presidencial revela, na verdade, o incômodo crescente com a realidade: o prestígio político do presidente está em queda livre. Pesquisas recentes apontam índices de rejeição cada vez maiores em diversas regiões do país. E não é para menos.
O Brasil enfrenta uma série de dificuldades econômicas, escândalos políticos mal explicados e uma sensação generalizada de estagnação. Muitos cidadãos, inclusive os que um dia confiaram em promessas de mudança, hoje se sentem traídos. O episódio do cidadão preso por gritar “ladrão” não é apenas um caso isolado de desrespeito à liberdade; é um sintoma do desespero de um governo que já não encontra apoio popular.
É inevitável comparar com outras democracias. Nos Estados Unidos, por exemplo, críticas — muitas vezes ferozes — ao presidente são comuns e fazem parte do processo democrático. O ex-presidente Donald Trump foi alvo de incontáveis manifestações, sátiras e ofensas públicas, mas nunca autorizou a prisão de um cidadão por gritar contra ele.
Na China, por outro lado, qualquer forma de protesto contra o governo pode levar à prisão imediata — ou pior. O Brasil, ao prender um cidadão por ofender o presidente, aproxima-se perigosamente do modelo autoritário chinês, afastando-se das práticas democráticas ocidentais.
Outro ponto que chama atenção é o comportamento dos agentes públicos envolvidos na abordagem. Ficou evidente um certo padrão de “carteirada”, típico do Brasil, onde o poder político se confunde com autoridade pessoal. Ao invés de proteger o direito do cidadão à livre expressão, os policiais agiram como se estivessem defendendo a honra pessoal do presidente — como se vivêssemos em uma monarquia.
Isso é inaceitável. A função das forças de segurança é proteger a sociedade, não blindar governantes contra críticas. A confusão entre Estado e indivíduo, entre cargo e pessoa, entre ofensa e opinião, é um sinal claro de que estamos nos afastando do ideal republicano.
Por mais duro que isso soe, chamar alguém de “ladrão” — quando há fundamentos históricos, políticos e até judiciais para isso — pode ser considerado uma crítica política, e não um crime. O histórico de condenações e acusações envolvendo o presidente é de conhecimento público. Portanto, por mais deselegante que seja, muitos brasileiros entendem que usar essa palavra ao se referir a ele é um exercício legítimo de opinião.
Calar esse tipo de crítica não é apenas antidemocrático; é perigoso. É o tipo de prática que transforma um governante em figura intocável, como se fosse imune ao julgamento do povo. E esse é o primeiro passo para o autoritarismo.
Toda a situação se torna ainda mais absurda quando se percebe que o Estado gastou tempo, recursos e aparato policial para deter um homem por gritar algo que milhares de brasileiros já disseram — nas ruas, em redes sociais, em conversas de bar. A prisão em questão não teve base sólida, não gerou nenhuma consequência jurídica real e serviu apenas para constranger um cidadão e intimidar outros.
Pior: apenas reforçou a imagem de que o governo não aceita críticas e que seus opositores são tratados como inimigos. Em um país que se pretende democrático, esse tipo de postura deveria ser impensável.
O caso do cidadão preso por xingar o presidente é emblemático. Ele revela um Estado cada vez mais disposto a calar opositores, um governo que não tolera críticas, uma polícia que age para proteger figuras políticas e não a Constituição, e uma população que precisa lutar diariamente para manter seu direito básico à liberdade de expressão.
Não se trata de defender ofensas ou de incentivar a grosseria pública. Trata-se de defender o princípio de que, numa democracia, ninguém — absolutamente ninguém — está acima das críticas. Governantes que não suportam ser criticados devem rever sua vocação para o cargo. O poder não é um escudo contra a verdade, nem uma licença para perseguir quem ousa dizer o óbvio.
Se chamar o ladrão de ladrão virou crime, então a democracia está em risco.